Tetê que a cidade engoliu

Tetê pode ser tanto Tereza
Quanto Telma
ou Caroline.

É que a senhora, de aparentes cinquenta e poucos anos, não tem identidade própria nem registro. Ela não nasceu de um ventre, nasceu de uma boca, é mais uma palavra do que uma mulher. Uma mulher que circula pelos bares do meu bairro, embriagando-se de bebidas e palavrões. “Corre! Lá vem a Tetê!” era o que eu escutava quando criança. Rapidamente, ela virou em minha cabeça uma espécie de bicho papão, como o monstro imaginário embaixo da cama. 

Quando cresci, o medo virou apreensão, maneira adulta de lidar com fantasmas. Eu passei a vê-la como uma pessoa desequilibrada, apenas, uma bêbada que não batia bem das ideias. Era só não prestar atenção, não dar bola, que ela se afastava. Mas um dia nos esbarramos. Ela, sentada em uma cadeira, refém de várias latinhas e distante da festa que acontecia ali no bar da frente; eu, ao lado, sem escolhas, receosa do início de uma confusão, observando o medo que algumas pessoas próximas sentiam. Foi quando ela me chamou, sussurrando pra ficar ao seu lado.  A criança medrosa recuaria, mas a mulher apreensiva era também curiosa. Me aproximei, esperando o pior, e ele veio.
Com o olhar perdido e os poucos dentes à mostra, ela murmurou: “Por favor, não deixa ninguém me bater”.
E fui eu quem apanhou ali. A força daquelas poucas palavras me surraram por dentro. Me surraram porque, pela primeira vez, eu parei pra enxergar aquela mulher. Como a cortina que desce na hora do espetáculo, eu percebi que ela não era uma atração. Aquelas mãos que acenavam e aplaudiam sua embriaguez nas ruas, não a protegiam fora delas. Era fácil rir do modo como cambaleava e se exaltava pelas manhãs, mas o que acontecia quando as luzes se apagavam? O que faziam com seu corpo quando ele repousava, inconsciente, nas calçadas? De quem era a sombra que lhe batia? 

Havia um motivo pra ela ter caído no vício, mas não me contaram sobre ele. Tudo que me ensinaram a respeito dela foi que era alguém de quem se devia ter medo e, depois, alguém de quem se devia rir. Eu aprendi a desprezar Tetê, e não amá-la. Eu aprendi a fugir dela e depois a fazer chacota com seu nome, e não a conhecê-la.  É isso que nos instruem a fazer com pessoas que sofrem de algum vício. Nos ensinam a desfigurar seus rostos e a transformá-las em animais de circo. Ninguém nos ensina a livrá-los da jaula.

Fiquei ao seu lado enquanto pude. Depois, a cidade voltou a engolir sua presença, identidade e feição, mesmo sendo minha a indigestão. Voltei pra casa ainda sem saber seu nome, mas sabendo que era eu, na verdade, o bicho papão a se temer.

O amor nos leva pra frente e, no caso de Tetê, Tereza, Telma ou Caroline, a falta dele nos faz mesmo é andar um bocado pra trás.
Gabriela Almeida

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