Terra da Luz, Terra do Sangue: Ceará

Violência em Fortaleza

Eu sou a terra do sol, do amor e da luz que meu hino anuncia. Ceará, onde um dia um antigo compositor cantou meu céu como pleno de paz, e outro, com fé, me chamou de “meu porto seguro, minha alegria”. Meus moradores já não têm mais ânimo para recitar tais versos. Meu vento acostumado a soprar as velas para o mar, tem ecoado com assustadora veemência prantos e gritos motivados por um grande número de mortes violentas. Tem sido dias difíceis. Com tantos assaltos e homicídios, para meus habitantes só resta um sentimento de medo. De fortaleza, sobrou-me o nome da capital, pois há muito não sou seguro.

Em outubro de 2017, enquanto os outros estados lançavam campanhas sobre o outubro rosa, o meu mês foi vermelho. As mulheres não apenas tinham que ficar atentas ao exame de rotina que a época lembrava, mas às ruas e os lugares por onde passavam. Assim como elas, todos os outros moradores correram risco no que foi considerado o mês mais violento daquele ano. Entre meus filhos, os garotos pobres e novos foram os que mais caíram, inertes, em meu solo. No lugar de chuva, recebi lágrimas.
Antigamente, só meus açudes e rios choravam. Agora, eles pararam para dar lugar às mães.
Esses garotos, abandonados pela sorte e esquecidos pelas políticas públicas, fazem parte de uma periferia controlada por organizações criminosas, alimentadas pelo tráfico e pelos assaltos. A falta de estrutura e educação permitem que eles participem ou sejam vítimas de facções que dominam as ruas e ditam regras. Ordens como baixar os vidros dos automóveis e até mesmo abandonar casas são prontamente atendidas por uma população amedrontada e desesperançosa. Essa periferia não faz parte das minhas atrações turísticas, por isso, nunca sai nas fotos.

O problema só se alastra. Meus filhos preparados para julgar e resolver esses vários crimes com justiça, já não conseguem acompanhar o movimento intenso da realidade. Prova disso é que no ano passado, a cada 100 casos, 77 não foram resolvidos. Impunidade que descontenta minha população e gera revolta. Minha justiça é cega, mas meu coração não.

Aqueles que deveriam combater esses crimes já não conseguem resolve-los. Mesmo com o aumento constante do efetivo, o problema só aumenta e muitos já morreram no exercício ingrato desta profissão. Outros matam e cometem barbáries, acreditando ser a melhor resolução. Mas morte não se paga com morte, assim, tudo que venho é perdendo mais vidas.  Nessa guerra, a violência já passou da hora de ser descartada como solução.

Com isso, meu estado é de terror. A palavra chacina vem me atormentando. Antes era usada somente para classificar a violenta matança de animais, mas hoje, caracteriza o assassinato brutal e cruel de humanos. Cada um que vai, leva um pouco de mim. Só me resta ter esperança de que, um dia, todo esse derramamento de sangue será estancado.


Chacinas 
Chinelas e vidas perdidas

Antônio era um dos meus milhares de habitantes, um vendedor de cachorro-quente nos seus quase quarenta anos, que ria mais do que falava com as pessoas. Eu lembro dos pés quentes dele, porque sua presença irradiava calor. É assim que costumo sentir os meus filhos periféricos, com a ternura de quem sabe que eles só têm ao meu chão para se apoiar. Marrom, como era conhecido, morava na periferia de Cajazeiras. A última vez em que pude senti-lo, foi também a última vez em que trabalhou. Escorado no carrinho, conversando com seu filho de 12 anos, dando risada por pouco. Era madrugada e aquele prometia ser um bom dia de vendas, mas Marron não o cumpriu. Tão rápido quanto ria, morreu. Caiu duro no meu chão, com o sangue quente como ele era. Seus olhos foram se despedindo, buscando o filho, sem saber que era um adeus.

Carrinho de trabalho do Marrom.
(Foto: Bárbara Sena/TV Verdes Mares)
Os tiros que atingiram Marron vieram de três carros que pararam, abruptamente, na frente do lugar em que ele trabalhava naquela noite. Homens e mulheres encapuzados atiraram na casa de festas conhecida como “Forró do Gago”. Mariza, uma vendedora de 37 anos que passava pela rua, tinha sido parada por um conhecido e morreu enquanto estava sendo elogiada. Não teve tempo nem de agradecer. Natanael, motorista de aplicativo, havia acabado de deixar um passageiro quando foi atingido. Morreu sobre o volante, sem direito à próxima corrida. Dentro da festa, homens e mulheres tentavam pular os muros e escapar para os braços dos filhos que deixaram em casa. O filho de Marrom foi atingido na coxa e viu o pai pela última vez, caindo com o tiro que levou na cabeça. 14 mortes em cerca de 40 minutos. 18 feridos, física e emocionalmente. Tristes testemunhas do que foi o maior massacre da minha história.

Apenas dois dias depois, enquanto o luto ainda assombrava internacionalmente meu nome, outro assassinato em massa escancara que nos presídios a pena de morte já foi aprovada. Dez homens foram mortos em um lugar que deveria ser um centro de reabilitação, mas acabou se tornando um purgatório. O presídio de Itapajé possui celas que suportam 25 detentos, mas guardava 83. A superlotação permitiu que o lugar se tornasse uma extensão do tráfico e virasse um cenário propicio para conflitos e rebeliões como essa. Foi uma manhã difícil. Os gritos e passos apressados levaram cruelmente embora aqueles que habitavam uma parte isolada do meu território, mas que ainda faziam parte dele.

Porém, não é só o presente que me assusta. Em 2015, uma série de revanches ocasionou 11 mortes em Messejana.  O riso, que sempre foi o meu cartão postal, foi tirado da boca de dezenas de famílias por policiais. Nesse massacre, os responsáveis pela segurança foram, ironicamente, os agressores. Um bate-boca qualquer fez com que usassem do poder sobre mim para arrancar as vidas de quem acreditavam merecer. Alisson tinha 17 quando respirou pela última vez. Valterberg era policial e morreu também, em uma tentativa de assalto na mesma noite, o que apenas serviu como motivação para as mortes seguintes

A 'vitória' dessa batalha entre periferia e polícia foi dos atuais cangaceiros fardados. É certo que tenho homens e mulheres que se apartam desse senso perigoso de justiça e que servem de maneira correta e heróica a mim. Agentes que, em seu exercício, arriscam a vida por salários que não correspondem a ela. Mas a falta de preparação da maioria deles e a ausência de políticas de segurança e educação pública, faz com que aqueles que deveriam ser protegidos, se tornem os rivais. Quando a força de segurança não tem agentes que são mortos ou que fazem 'justiça', possui a falta de controle sobre o domínio das facções em minhas terras. 
O preço disso tudo, quem paga é quem estiver por perto. 
No massacre de Cajazeiras, apenas três dos 14 mortos tinham passagem pela polícia. Os assassinos seriam de uma gangue rival àquela que andava na região. A chacina de Itapajé foi uma resposta cruelmente dada por essa  organização à ação da primeira. A maioria das vítimas da revanche de Messejana era de jovens, metade era menor de idade. Apenas duas delas possuíam envolvimento com a policia, sendo eles 'crimes' como multas de trânsito e não pagamento de pensão alimentícia. 

O sangue mais quente que cai é sempre o do inocente, porque mais triste do que pensar que pode morrer ao sair de casa, como costumam pensar policiais e 'bandidos', é sair de casa e morrer sem saber o motivo.


Tentativa de reação
O que foi feito e dito

Minha segurança vive em crise, a população permanece acuada e teme o agravamento dos casos de violência. A sensação de insegurança já virou hábito. Alguns só encontram esperança na fé, porque é mais fácil acreditar na proteção de uma crença ao que acreditar nas minhas autoridades. Eles têm se esforçado para dar respostas ao povo, tentando passar uma imagem de controle que não possuem. Tudo que se vê é um verdadeiro esgotamento do meu  governo, deixando claro que sozinho não consegue resolver. Aumenta-se o efetivo, expande-se o batalhão de policiamento de rondas e Ações Intensivas e Ostensivas (BPRaio) para o interior, aumenta-se a frota de viaturas, implanta-se sistemas de videomonitoramentos, intensifica-se as ações e, ainda assim, parece que o problema está longe de ser resolvido.

(Foto: Evilázio Bezerra / O Povo)
Faz tempo que o crime organizado, o grande vilão da minha segurança pública, tem não apenas se expandido, como também ganhado níveis que ultrapassam minhas fronteiras. Em resposta à chacina de cajazeiras, motivada pela briga por território dessas facções, realizou-se uma operação que foi considerada pelo secretário da segurança pública, André Costa, como a maior investida da polícia cearense contra esse tipo de organização criminosa. As abordagens realizadas já geraram a apreensão de mais de 34 armas de fogo na minha capital e em regiões metropolitanas. Assim como levaram à prisão de mais de cinco suspeitos pelo crime realizado. Camilo Santana, atual governador, anunciou a criação de uma Vara, no âmbito da Justiça, especializada no julgamento dos casos relativos ao crime organizado, assim como informou sobre a criação de um grupo especializado de combate ao crime organizado no âmbito da Polícia Federal.

Mas o vigor em que essas investigações andam, sob pressão da população e da mídia, corre o risco de diminuir à medida em que o tempo transcorra e a chuva arranque do meu chão o sangue que ainda existe nele. Visto que, até novembro do ano passado, o massacre ocorrido em Messejana já contava com a soltura de grande parte dos policiais apreendidos e com a arquivação de alguns dos processos de acusação. Mesmo dois anos após o ocorrido, o caso ainda se arrasta em um julgamento doloroso para quem espera por justiça. A importância dada a esses massacres parece esfriar junto com os corpos, mas a lembrança ainda é quente na cabeça dos familiares e amigos daqueles que morreram apenas como  estatística.

Não existe fórmula mágica nem solução rápida, tampouco confiança e entusiasmo com as manifestações públicas. Cerca de 44 presos foram mudados de unidade no presídio de Itapajé após a chacina, prática realizada com o intuito de afastar os rivais de facção e evitar novas rebeliões. Mas nada garante que outras não ocorram, dentro ou fora das celas. Meu policiamento precisa estar perto da população e das comunidades, mas, tendo em vista a rivalidade criada, elas temem por isso. O Ronda do Quarteirão foi uma tentativa de que esse distanciamento e sentimento de insegurança acabasse, contudo, fora do papel, acabou se tornando apenas um desfile de modernas Hilux’s.
Afinal, até quando meu povo vai viver refém da violência de "casos pontuais" apontada por meus governantes?”

Saídas
Para onde olhar

Saindo das questões legais, projetos sociais eficientes são essenciais para a diminuição da criminalidade. É preciso uma visão humanizada do problema, além de ajuda,  principalmente, para aqueles que não têm outras opções, reinserindo estas pessoas na sociedade; uma verdadeira interação entre os oficiais, minhas comunidades, associações e instituições. Dessa maneira, além de constantes investimentos em educação e em políticas públicas realizáveis, essas medidas são de extrema importância, se mostrando como um caminho a longo prazo para se amenizar o problema.

Afinal, as grandes violências não são as únicas que mancham meu nome. É preciso possibilitar aos meus habitantes não apenas a certeza de não viverem massacres como as chacinas, mas também a possibilidade de estar seguro nas ruas, nas calçadas ou nas próprias casas, sem o medo constante de assaltos e furtos que os fazem subir muros e portões. A esperança é, no entanto, uma utopia. Com tantos dados e índices elevados de criminalidade, parece impossível acreditar que meu povo possa desfrutar de dias mais tranquilos, embora eles não cansem de desejar ver novamente a luz, na terra que sempre brilhou.

Parentes das vítimas da chacina de Messejana, 2015. (Foto: Tatiana Fortes / O Povo)

Além do luto
O que virá?

Antigamente, eu era castigado apenas pelo sol; agora, sou punido pelas lágrimas e poças de sangue dos meus filhos. O problema mais grave que enfrento não é mais a falta de chuvas, é a ausência de segurança. Me sinto como um pedaço de terra esquecido, incapaz de abrigar meu povo sem que ele sinta medo por viver em mim. Tenho o nome estampado em manchetes policiais, sujando a graça que carregava nele. Meus bairros mais nobres permanecem felizes, com seus muros altos e as cercas elétricas, suas câmeras espalhadas e os seguranças fardados. Meus bairros periféricos permanecem mortos, desaparecidos nas conversas dos turistas e nas reuniões do governo. No primeiro, medo; no segundo, abandono. Entre eles, um abismo.

Quero voltar a ser pacífico, motivo de inspiração para artistas e amantes da natureza que carrego. Desejo que as minhas crianças tenham a oportunidade de crescer, porque uma parte delas ganha de aniversário o corpo estendido no chão. Quero que soltem pipa e brinquem de bola, não de armas, e que seus pais ganhem a oportunidade de alfabetizá-las. Desejo, principalmente, ser visto. Não apenas a minha parte bela, de praias e pessoas bonitas, mas também o meu lado oculto. É esse lado, calado e oprimido, que está gritando agora. E, por aqui, a voz do oprimido é o tiro, que ele dá ou que ele leva.

Além do luto eu preciso ver um recomeço.
E que as brigas pelo meu território sejam apenas para conhecê-lo
e não pra decidir quem fica em cima ou embaixo do meu chão.

Gabriela Almeida 
e Marcos Moreira

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