Representatividade: o que podemos observar do encontro entre Mirella e Glória Maria?

Glória Maria e os irmãos Archangelo - Projeto NVE

Nos últimos dias a internet deu destaque à brincadeira de quatro irmãos: Mirella, Peterson, Pablo e Marjorie, moradores de Ribeirão Preto, SP. Entre posts sobre conturbações políticas, casos de violência e crises de todos os tipos, um vídeo caseiro floresceu, mostrando que questões sociais importantes não precisam de muitos caracteres ou termos rebuscados para se fazerem importantes; elas estão presentes no dia a dia e, neste caso, nas brincadeiras dos irmãos Archangelo.

No vídeo feito pela mãe, Mirella aparece como uma jornalista que denuncia as más condições da rua onde mora enquanto é gravada por Peterson e sua câmera de papelão; os entrevistados são os mais novos, Pablo e Marjorie. A simplicidade da produção e o impacto das imagens de crianças exercendo, mesmo que de brincadeira, uma comunicação tão social e cidadã deram visibilidade ao vídeo, compartilhado com avidez nas redes sociais.

A história dos Archangelo chamou a atenção de grandes portais de notícias e, no último domingo, do Fantástico, que foi até Ribeirão Preto conversar com as crianças. A matéria de seis minutos levou à TV dos brasileiros um assunto importante: representatividade. Mesmo que de forma velada. Mesmo sem discurso e debate. Mesmo que sem querer. Ainda assim, às 21h30 de um domingo o povo brasileiro viu em sua telinha uma menina negra que brinca de fazer Jornalismo com os irmãos escolher, entre tantas globais, Glória Maria como sua jornalista inspiradora, o nome feminino negro de mais peso no cenário jornalístico nacional. Um dos poucos nomes.

“Eu acho ela muito divertida e bem parecida comigo.” (Mirela comentando sobre Glória)

Não é só uma questão de cor de pele, é tão mais que isso. Representatividade implica o modo como quem não está sob os holofotes vê o mundo e a si mesmo; implica na vida do adolescente negro que quer ser jornalista, mas pouco vê pessoas negras nas principais bancadas; implica na menina gordinha que assiste novelas, mas pouco vê pessoas gordas em papéis de maior importância; implica no nordestino que quer ser apresentador de TV, mas tem sotaque. Esses contextos não dizem em alto e bom tom que “negro não consegue ser jornalista”, que “gorda não pode ser atriz” ou que “não é legal apresentador com sotaque”, mas quem não entende o recado?

Essa bola de neve de silêncios e ausências afeta com especial força questões internas e pessoais do negro com o negro, da gorda para a gorda, do nordestino com o nordestino; essas batalhas internas que são enfrentadas todos os dias ao se olhar no espelho e assistir televisão. Porque quando o Brasil que assistimos é diferente daquele que vivemos no dia a dia, principalmente nas fases infantil e adolescente, a tendência é achar que este segundo deve se moldar ao da TV, e não que ele merece ser representado nu e cru por ela. Isso não é dizer que a TV é responsável por todos os problemas de autoestima, identidade ou aceitação, mas, já tendo sido presente em quase 97% das residências brasileiras, sua força não pode ser ignorada.

Por isso a brincadeira inocente das ruas de Ribeirão Preto significa tanto, com o microfone de isopor e a câmera de papelão. Por trás desse faz de conta, crianças nutrem sonhos e vontades inspirados no que assistem na TV, em quem assistem na TV. Sorte de Mirella ter Glória Maria, mas ainda teremos a oportunidade de dizer que alguém teve sorte de ter Mirella?
Ou Peterson?
Pablo?
Marjorie?
Juliana Teixeira

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