Antônio de Dalva

Antônio de Dalva, por Gabriela Almeida // Foto ilustrativa de mesma autoria

Era Véspera de Natal. A rua, mesmo às seis da manhã, parecia receber o frescor do feriado mais aguardado do ano. Mas Antônio não era da rua o tanto que a rua era de Antônio. O homem que veio sentar ao meu lado, na calçada oposta à parada de ônibus vazia, deu outra cor à face da minha momentânea solidão. Um bêbado, pensei. Tive o medo que só as mulheres conhecem e me afastei. Ele, franzino, com seus quase 60 anos de cansaço e rugas, retribuiu o meu temor com o sorriso que lhe permitia dar os poucos dentes. Se apresentou, como se fosse aquela uma das melhores ocasiões, e foi abrindo o peito como se esse já não estive ali, exposto. Trabalhava o dia inteiro nas ruas para ganhar centavos. Ganhava centavos para poder comer. Bebia, mas jurava que tudo que queria naquela hora era ter a primeira refeição. Alguém apareceu para dar comida, ele agradeceu. O ônibus não aparecia no horizonte e eu observei que aquela figura ao meu lado era mais interessante do que uma vaga partida. Conversamos então sobre o natal, sobre a época de chuva, as dificuldades que ele passava como catador de reciclados e o amigo que passou brincando com ele na hora. Mas foi quando falamos sobre o que faríamos a noite que uma maré de água invadiu seus olhos sofridos. Ele iria para casa assistir o especial do Roberto Carlos na tv. Eu achei graça do comum, indaguei sua emoção. Foi quando me falou sobre Dalva, sua mulher. Fazia alguns anos que ela havia sido assassinada a facadas no seu próprio comércio, por causa de um maço de cigarros qualquer. Minha respiração estancou; a dele parecia acompanhar o ritmo da faca que matou sua companheira. Me disse que ainda não havia compreendido como alguém podia ter ido embora assim, por tão pouco. Não conseguia aceitar a imagem da sua esposa sendo agredida, indefesa, por um drogado que queria fumar e não tinha dinheiro. Um vicio, uma dependência e foi Dalva quem virou fumaça naqueles dedos sujos de droga. Entre soluços, me contou que ela assistia o especial do Roberto todos os anos e, por isso, ele sempre assistia para lembrar dela. O ônibus apareceu e eu percebi que minha vista marejada teve dificuldades para reconhecê-lo. Tirei todo dinheiro que tinha na carteira e entreguei para Antônio. Ele me agradeceu emocionado, entendendo que deveria voltar pra casa, comer bem, tomar um bom banho e se preparar pro encontro que tinha uma vez por ano com o amor da sua vida.  Atravessei a pista e dei sinal, do outro lado ele me sorria. O frescor do natal ainda estava na rua, mas Antônio não era da rua como a rua era de Antônio. Antônio seria, para sempre, de Dalva.

Gabriela Almeida.

2 comentários:

  1. Uma das histórias mais bonitas que já li! Simples, curta, mas de uma profundidade imensa! Gratidão por essa narração cheia de sensibilidade, sua escrita é um dom, garota!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Gratidão!É bom saber que a gente pode seguir tocando o outro assim.

      Excluir

Instagram