Era Véspera de Natal. A rua, mesmo às seis da manhã, parecia receber o frescor do feriado mais aguardado do ano. Mas Antônio não era da rua o tanto que a rua era de Antônio. O homem que veio sentar ao meu lado, na calçada oposta à parada de ônibus vazia, deu outra cor à face da minha momentânea solidão. Um bêbado, pensei. Tive o medo que só as mulheres conhecem e me afastei. Ele, franzino, com seus quase 60 anos de cansaço e rugas, retribuiu o meu temor com o sorriso que lhe permitia dar os poucos dentes. Se apresentou, como se fosse aquela uma das melhores ocasiões, e foi abrindo o peito como se esse já não estive ali, exposto. Trabalhava o dia inteiro nas ruas para ganhar centavos. Ganhava centavos para poder comer. Bebia, mas jurava que tudo que queria naquela hora era ter a primeira refeição. Alguém apareceu para dar comida, ele agradeceu. O ônibus não aparecia no horizonte e eu observei que aquela figura ao meu lado era mais interessante do que uma vaga partida. Conversamos então sobre o natal, sobre a época de chuva, as dificuldades que ele passava como catador de reciclados e o amigo que passou brincando com ele na hora. Mas foi quando falamos sobre o que faríamos a noite que uma maré de água invadiu seus olhos sofridos. Ele iria para casa assistir o especial do Roberto Carlos na tv. Eu achei graça do comum, indaguei sua emoção. Foi quando me falou sobre Dalva, sua mulher. Fazia alguns anos que ela havia sido assassinada a facadas no seu próprio comércio, por causa de um maço de cigarros qualquer. Minha respiração estancou; a dele parecia acompanhar o ritmo da faca que matou sua companheira. Me disse que ainda não havia compreendido como alguém podia ter ido embora assim, por tão pouco. Não conseguia aceitar a imagem da sua esposa sendo agredida, indefesa, por um drogado que queria fumar e não tinha dinheiro. Um vicio, uma dependência e foi Dalva quem virou fumaça naqueles dedos sujos de droga. Entre soluços, me contou que ela assistia o especial do Roberto todos os anos e, por isso, ele sempre assistia para lembrar dela. O ônibus apareceu e eu percebi que minha vista marejada teve dificuldades para reconhecê-lo. Tirei todo dinheiro que tinha na carteira e entreguei para Antônio. Ele me agradeceu emocionado, entendendo que deveria voltar pra casa, comer bem, tomar um bom banho e se preparar pro encontro que tinha uma vez por ano com o amor da sua vida. Atravessei a pista e dei sinal, do outro lado ele me sorria. O frescor do natal ainda estava na rua, mas Antônio não era da rua como a rua era de Antônio. Antônio seria, para sempre, de Dalva.
Uma das histórias mais bonitas que já li! Simples, curta, mas de uma profundidade imensa! Gratidão por essa narração cheia de sensibilidade, sua escrita é um dom, garota!
ResponderExcluirGratidão!É bom saber que a gente pode seguir tocando o outro assim.
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